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Correr na Cidade

Race report : Oh Meu Deus - E tudo a Montanha levou ( 2ª parte )

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 ( link primeira parte )

 

Hardcore trail
No km seguinte ao 1º abastecimento entramos numa secção de curvas e sobe e desce no meio de pedras e árvores e atravessamos riachos baixos, apesar de ser uma secção muito bonita, muito penosa nas pernas. Por esta altura seguia com o jovem que passei no abastecimento e ainda fizemos uns km's juntos. De seguida entramos num estradão junto ao rio Alva e durante um bom tempo colocamos ritmo elevado, uma parte perto dos 4:00/km e mais à frente uma subida forte e comprida. Paisagem fantástica e temperatura ideal. Por esta altura todos os problema tinham ficado para trás e já seguia com o corpo e cabeça perfeitamente alinhados na prova.
2km seguintes com ligeira descida e a fazermos médias de 4:45/km num estradão dificil de controlar pés e verticalidade do corpo, mas era altura de fazer pressão e tentar apanhar o 1º e 2º que não iam longe. Atravessamos por umas centenas de metros um pseudo estradão/trilhos fechados, como se fizesse alguns anos que ninguém passasse ali e com vegetacao mais alta do que nós em alguns sitios, em outros voavamos por cima das mais baixas, mas sempre a carregar no ritmo. Por esta altura o parceira de ritmo tinha ficado ligeiramente para trás e vinha acompanhado do 5º classificado. Tanto se rolava a perto de 4/km como iamos a passo quase a abrir caminho com uma catana. Gosto desta diversidade numa prova, apesar de não fazer bem ás pernas e ao fluxo sanguineo, mas permite algum descanso ao coração.



A Besta
Perto do km20 começamos a entrar no acesso para a garganta que iriamos encontrar mais à frente, a subida que metia medo a toda a gente e obrigava a muito respeito. Qualquer erro aqui de excesso de esforço ou de quedas seria muito complicado para o resto da prova ou provocar mesmo a saida da mesma. Começa devagarinho e vai aumentando de intensidade, até culminar num pequeno planalto uns metros antes da barragem Marques da Silva ( Lagoa Comprida ).
Mal entramos no estradão comentámos um para o outro que os dois da frente iam com um ritmo diabolico, fazia já alguns km's que não os viamos e ao ritmo que iamos, ui, ui...
Quase 1km depois aparece-nos por detrás o que pensavamos que ia em primeiro. "então ? onde andaste ?"... "perdemo-nos ali numa curva e atrasamos uns minutos". Afinal tinha andado alguns km's ali em primeiro e a pensar que ia em terceiro a puxar para apanhar os dois primeiros... cenas de provas :)
Aqui juntou-se um grupo de cerca de 4 corredores e seguimos juntos por quase 2 km. ainda deu para um km a 5:50/km (com um RAI de 4:22 devido à inclinação forte) e o seguinte já a entrar na garganta e na confusão do trilho, desceu para 10:00/km. E aqui começa o calvário. Os outros 3 seguiram e eu fiquei para trás. Não me estava a sentir completamente bem. Sentia os pulmões com dificuldade em funcionar e o corpo muito cansado, mas as pernas e o coração estavam perfeitamente calmos, sem dores.
A tentar perceber o que se passava com o corpo abrandei, e meti a versão powerwalking e lá fui gerindo o esforço. No km seguinte subimos 205D+ e fiz média de 18:40/m ( RAI 8:13 ). Passaram por mim 2 atletas e lá segui calmamente. Via lá em cima uns bons 300 ou 400m à frente os 3 "miudos" que me tinham feito companhia a serpentear no trilho.
Muita àgua bebi. Ingeri Gel e magnésio. Mas o corpo a cada passo que dava sentia-se mais fraco.
Km seguinte foi feito a 19:19/km ( RAI 7:42 ) e parecia que me tinha caido um camião em cima.
Em algumas partes tivemos que meter as mãos no chão e puxar pelo corpo tal a inclinação que existia na sobreposição de algumas rochas. Deu no meu GPS 237D+ neste km.

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( uma perspectiva da subida vista pelo google earth )


Último km antes do abastecimento de liquidos que estava na entrada da barragem, era uma parte em subida e o resto num pequeno planalto, de onde dava para ver lá o fundo a estrada, a casa do abastecimento e a imponente barragem. Ouvi várias pessoas a gritar nomes e a incentivar a correr, uma delas era a Liliana a chamar por mim. Quase não ouvia tal o estado de cansaço que ia. Pernas ok e coração ok. Cabeça e pulmões não estavam ali. Também estava a pagar um bocado os tais treinos que me fizeram falta como referi no inicio do texto, os treinos longos. Só tinha feito 2 treinos de 20 e poucos km's em 2 meses e isso é muito pouco para preparar o corpo para uma prova de 70km com esta altimetria. Estava a falhar o treino. O treino rapido estava lá, mas faltava o de resistencia. O de resistencia fisica e psicologica. O treino que no ano passado tinha para dar e vender e este ano simplesmente não existia.

Cheguei ao abastecimento dos liquidos aos 25,5km com cerca de 3:10h de prova. Apesar de ter andado nos ultimos 3km's e começar a doer um pouco os gemeos do esforço, ainda estava com uma boa média.
Confesso que por dentro estava muito mal tratado mas com a Liliana à minha espera não podia mostrar que não me sentia bem senão ela ficava mais preocupada do que eu. Comi laranjas e banana, enchi de água e segui para o troço seguinte, quase 10km a percorrer o sopé da montanha até à torre.
Aqui já seguia com 1850D+ em 25km.

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( as vistas lá em cima são sempre do outro mundo )




Lá para cima
O abastecimento estava a cerca de 1570m de altura, o que quer dizer que faltava subir pouco mais de 400m em quase 10km. Comparado com o que já tinhamos feito, parecia canja. Nos primeiro metros tentei andar um pouco para que o corpo se adaptasse à altitude, respirasse um pouco melhor e a ver se o mal estar geral passava. Ao fim de uns 500m tentei correr, mas não conseguia fazer mais do que umas centenas de metros. O resto do percurso até perto da torre foi feito em caminhada. Não em powerwalking, mas em caminhada pura e dura... médias de 10 ou 12/km foram o menu da hora. Foi penoso, muito difícil, quase diabolico fazer tantos km's no sopé da montanha aquele ritmo. Cada pequeno planalto que entrava parecia demorar uma eternidade a percorrer.
Quando cheguei perto da torre, para fazer os últimos metros em alcatrão naquela última subida, o meu corpo estava quase em shutdown. Estava cansado, com sede, com fome mas não conseguia ingerir nada. Sentia o corpo como se estivesse a carregar uns 100kg ás costas nas últimas horas e o cansaço começava a acumular.
Quando passei a rotunda e comecei a fazer aqueles metros finais, vejo o que parecia ser uma cara familiar, mas como já estava mais para lá do que para cá, só me apercebi concretamente quando ele chegou mesmo ao meu lado. Fez a maior parte da subida comigo, calmamente e a andar tranquilamente. O meu obrigado a ele pela companhia naquele troço. Daqueles pequenos gestos que se transformam em enormes devido à situação em que estamos.
O meu grande obrigado ao Marco Rodrigues pelo gesto.

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Foram cerca de 800m que demorei cerca de 15min a fazer. No topo estava a Liliana à espera e com cara de preocupada.
Tinha acabado de fazer perto de 10km em quase 2h certas. Parecia a travessia do Sahara.
Sentei no abastecimento, branco, pálido e com sede. Bebi chá, café, comi doces e fruta e ao fim de 30min dei baixa do meu número da prova. Não estava em condições de continuar. A cabeça queria seguir mas uma parte do corpo neste dia não estava a querer ir junto.
Os próximos 10km eram a descer a garganta da Loriga, e para isso precisamos estar bem física e mentalmente para não cair ou tropeçar.



Prova - Organização
A marcação da prova esteve ao nível que o Paulo já nos habitou na serra, não tem fitas a cada 10 metros mas também não tem muitos pontos para as pessoas se perderem. Uma parte de fazer trail também passa por um pouco de aventura. Se tivermos fitas a cada 5 metros durante 70km, perde um pouco a piada do que é correr na montanha. Soube depois de chegar à meta que existiram problemas graves nas marcações da prova dos 20km. Uma situação que a organização reconheceu logo, percebeu o erro e julgo que não deveremos ver novamente. Um acréscimo de 10km numa prova de 20 é muito para quem não vai preparado.
Os abastecimentos foram similares ao ano passado. Nem 8 nem 80. Acho suficientes para o tipo de prova que encontramos.


O percurso este ano foi ligeiramente mais difícil mas gostei na mesma. Excelente percurso de trail.
A temperatura estava muito mais amena do que ano passado e isso notou-se bem na parte central e final da prova. Aquele calor abafado não se fez sentir tão forte e ainda bem para nós atletas.
Como ponto negativo acho que deveriamos ter um pouco mais de assistência volante de agentes da autoridade (GNR) ou elementos da organização em alguns pontos mais longincuos na prova, entre abastecimentos e no meio do nada ter sinal de telemóvel para pedir ajuda é complicado. Em caso de urgência, ter que fazer 500m ou 1km para pedir ajuda não é o mesmo que ter que fazer 3 ou 4km. Excelente o apoio que nos era dado na torre pela GNR e equipas de primeiros socorros que lá estavam. Sempre simpáticos e infindáveis a corresponder ás nossas solicitações.

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( foto depois da entrega de prémios )


Para o próximo ano lá estarei quase 100% certo. É um sitio mágico correr na Serra da Estrela e nesta altura do ano permite disfrutar bastante dos trilhos.


No Domingo de manhâ fomos até à festa da entrega de prémios e petiscar uns bolos e salgadinhos com os restantes atletas.
Quando chegamos ao Montijo pelas 17h enviei um SMS à minha mãe a dizer que já tinha chegado a casa e liga-me passado 2min. Sentei no chão e comecei a chorar. Tinha falecido perto do meio-dia. No dia anterior a fazer 90 anos.
Ainda hoje penso que esperou que eu chegasse bem ao fim da minha jornada na montanha. A controlar a ver se eu estava em segurança, como sempre fez. Espero que ela esteja a ter um merecido descanso, depois da sua jornada enorme e complicada.